Há momentos assim na vida: descobre-se inesperadamente que a perfeição existe, que é também ela uma pequena esfera que viaja no tempo, vazia, transparente, luminosa, e que às vezes (raras vezes) vem na nossa direcção, rodeia-nos por breves instantes e continua para outras paragens e outras gentes.
In Manual de Pintura e Caligrafia, Ed. Caminho, 6.ª ed., p. 291
(Selecção de Diego Mesa)
Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.
(in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)
Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é so um dia mais.
José SaramagoScience-fiction I
Talvez o nosso mundo se convexe
Na matriz positiva doutra esfera.
Talvez no interspaço que medeia
Se permutem secretas migrações.
Talvez a cotovia, quando sobe,
Outros ninhos procure, ou outro sol.
Talvez a cerva branca do meu sonho
Do côncavo rebanho se perdesse.
Talvez do eco dum distante canto
Nascesse a poesia que fazemos.
Talvez só amor seja o que temos,
Talvez a nossa coroa, o nosso manto.
(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)
Retrato do poeta quando jovem
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)
Oi Carlos
ResponderExcluirComovente post. A poesia do mundo ficou mais pobre. Lamentável.
Abração
Carlos sem dúvida uma grande perda e faço coro com o Wanderley: a poesia do mundo empobreceu.
ResponderExcluirQue bom termos sua obra tão vasta a poder nos acompanhar. O céu ganhou em poesia.
Um beijo
" Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é so um dia mais. "
ResponderExcluirgrandioso poeta...
sentiremos falta.
belissimo post viu, tá de parabéns!
beijos doce, boa semana
Beleza de homenagem, Cau! Emocionada e emocionante. E que foto!
ResponderExcluirBeijocas!
Fiquei triste, aprendi a gostar de Saramago desde o polêmico "Evangelho Segundo jesus Cristo"e depois me apaixonei por "Todos Os Nomes" e ao saber que ela era filho e netos de analfabetos, mais admiração senti por ele.
ResponderExcluirBjs
Janeisa
Linda homenagem amigo, agora fica para sempre seus poemas que são lindos.
ResponderExcluirbeijooo.
Um post sublime dedicado a quem bem merece. Adorei, Cau. Obrigada por esta postagem linda.
ResponderExcluirCarinhoso beijo e boa semana.
Prá Voce...
ResponderExcluirUm ramalhete
Com rosas e alecrim
Nele, fitas de afeto
Em laços de bem querer,
Um sorriso em cada pétala
Um bilhete de paz
Pra tua vida...
E um pedido!
Jamais se esqueça de mim!
(Sirlei L. Passolongo)
Saudações Poéticas.....M@ria
O momento é triste sim,,,mas todo poeta é eterno em sua alma e em sua obra...abraços de lindo dia pra ti.
ResponderExcluirlinda homenagem...fiquei encantada...
ResponderExcluirOBRIGADO!!!!
Eu fiquei sabendo amado,se eu te falar q eu conhecia as suas obras eu estaria mentindo,mas a julgar pelos apelos e comentários q tenho visto por aí de fato perdemos um grande poeta.
ResponderExcluirMuito digna a sua homenagem.
Parabéns.
Beijokas.
Triste, e nós ficaríamos mais se levasse com ele a sua obra, mas não, herdamo-la. Parabéns pela linda homenagem. Abraço Alvinegro
ResponderExcluirEle se foi, mas vai ficar guardado em nós.
ResponderExcluirBelíssima homenagem querido !
um beijo.
O homem se vai, mas sua obra permanece.
ResponderExcluirBela homenagem, Cau.
bjs
Foto perfeita do cabeçalho!! Eles devem estar conversando agora, né? :)
ResponderExcluirObrigada pela boa leitura neste início de manhã!! Beijus,
E o mundo ficou menor com a ida deste grande homem!
ResponderExcluirBeijinhos
Maria
Para onde vão os poetas quando morrem jovens? Para uma Shangri-lá das esferas letrais
ResponderExcluirUm desmundo na órbita das sensibilidades apuradas?
Para uma cidade fantasmas de sígnicos humanos
Em que há uma toda nova preparação para um revisitar-se?(...) (
Desconheço o autor.
BeijooO*
Muito bonita a sua homenagem a Saramago, Carlos!
ResponderExcluirDe você...Era de esperar..essa sua alma sensível!
grata por seres meu amigo!
Beso, meu lindo
Olá... Já estou aqui, gostei do seu espaço. Vou-lhe seguir, me siga tambem em:
ResponderExcluirwww.congulolundo.blogspot.com
www.queriaserselvagem.blogspot.com
Grande abraço.
Carlos, obrigado pelo comentário simpático que deixaste lá no meu cantinho. É com prazer que passo por aqui, para conhecer-te e admirar a poesia, a beleza das tuas palavras...
ResponderExcluirÉ linda esta tua homenagem ao grande escritor que foi [é... sempre!] José Saramago, embora a minha sensibilidade me aproxime mais de Miguel Torga, este é, também, dos escritores contemporâneos da língua portuguesa, que mais admiro.
Um abraço, Carlos, gostei de estar contigo.
Carlos Gonçalves
Infelizmente, ele se foi, agora nos resta acha-lo no legado que ele deixou...
ResponderExcluirFique com Deus, menino Carlos Rosa.
Um abraço.